11 janeiro 2006

Da Urbe e do Burgo - I

Da Urbe e do Burgo é o título de uma colectânea de crónicas de Sant'Anna Dionísio, publicadas inicialmente entre 1960 e 1970, no jornal O Primeiro de Janeiro, que a Lello & Irmão editou em 1971.

A Cidade Surpreendente, propõe-se reproduzir aqui alguns excertos dessas crónicas do distinto pensador, que tão bem conhecia e tanto amava o Porto, e ilustrá-los, na medida do possível, com imagens fotográficas.
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Os Dois Almadas

«Durante muito tempo se supôs que a cidade do Porto devia a sua profunda transfiguração, operada na segunda metade do século XVIII, à acção reformadora do desembargador Francisco de Almada (o suposto orientador e promotor de "todas" as grandes obras de urbanização modernizante levadas a efeito na periferia do velho burgo) , varão falecido em 1804, e que, depois de um longo hiato de esquecimento - em boa parte explicável pelos dois períodos consecutivos de infortúnios das invasões francesas e da guerra civil - seria objecto de exaltadas evocações ao efectuar-se, em 1879, por iniciativa do Município, a trasladação das suas cinzas para o Prado do Repouso, então inaugurado, onde hoje se encontram, num mausoléu, sobrepujado por um busto lavrado pelo cinzel de Soares dos Reis.



Esta persuasão era tão forte que, quando se deu esse nome de "Almada" à rua que hoje ainda assim se designa, ambígua e injustamente se visava, como é sabido, a evocação da figura do desembargador e urbanizador "pombalino" (sic), desaparecido pouco antes da primeira invasão napoleónica.
No entanto, já há meio século, na sua obra Portuenses Ilustres, Sampaio Bruno entendeu, e com razão, que essa atribuição das maiores transformações do Porto ao afamado Francisco de Almada era bastante indevida, acentuando que o "grande Almada" não era o desembargador falecido em 1804, mas sim o pai, o regedor de armas governador da província de Entre Douro e Minho, parente e homem de confiança do marquês de Pombal, falecido em idade avançada, em 1786, na cidade do Porto, onde teria exercido longa influência como governador da cidade, administrador do erário e inspector das obras de interesse público.

Na realidade, o reparo de Bruno plenamente se justifica se se prestar um pouco de atenção às datas das principais obras de transfiguração que, no Porto, se realizaram na segunda metade do século dezoito.

Antes de tudo, importa ter presente que, ainda na primeira metade desse século, a cidade era circundada pela chamada muralha fernandina, com as respectivas torres, portas e postigos, que a cingiam, num perímetro de cerca de três quilómetros.Fora desse cinto, era o "arrabalde".

Pelas gravuras que nos ficaram dessa época se vê claramente a fisionomia singular da cidade, comprimida entre essa poderosa cerca medieva que, de um lado, subia pelos alcantilados fraguedos dos Guindais, e, do outro, pela encosta íngreme de Miragaia, notando-se ao longo do rio um alto muro marginal com a grande Porta da Ribeira junto da confluência do chamado rio da Vila e, de um lado e outro, um certo número de arcadas e postigos.

Assim a contemplou e desenhou o pintor Baldi, secretário de Cosme de Médicis, na sua passagem pela cidade, em 1670. E, como ele, outros.

A demolição dessa cinta robusta que, ainda em pleno Século das Luzes imprimia um cunho tão acentuadamente pitoresco e arcaico ao casario moreno do Porto, seria o grande golpe transfigurador do velho burgo.

Ora esse golpe, em boa parte, foi vibrado por João de Almada, o pai, e não por Francisco de Almada, o filho. Foi aquele quem mandou demolir a grandiosa Porta da Ribeira (1774) para poder concluir a audaciosa obra de urbanização e higiene que ai realizou: a cobertura do velho e pestilento "rio da Vila", que assim se converteu em colector axial da cidade moderna, e sobre cuja abóbada se lançou o íngreme pavimento da Rua de S. João, também da sua iniciativa. Foi ele quem deitou por terra o "postigo do sol", convertendo-o na monumental Porta do Sol (por sua vez demolida, uns oitenta anos depois, por uma edilidade ignorante). Foi ele, decerto, ainda quem mandou apear a Porta do Olival, que fazia face à Cordoaria, porta enorme flanqueada por duas torres, situada, talvez, onde hoje está a Cadeia da Relação. O edifício filipino havia ruído. João de Almada mandou levantá-lo de novo, servindo-se, por certo, em boa parte da «enorme pedreira» que (para os seus olhos) era a muralha.

A própria Torre dos Clérigos (concluída em 1763 que o poeta Teixeira de Pascoaes, num súbito espirro de bom humor, definiu, num livro seu, como «o Porto espremido para cima», não deixou de receber com certeza muita cantaria da velha muralha. Pedras que teriam visto passar o séquito de D. João I com sua noiva, D. Filipa de Lencastre, teriam sido guindadas aos inverosímeis andaimes, depois de aparelhadas e lavradas, sob o olhar atento de Nasoni, transformando-se em empoleirados pináculos, balaústres e cornijas vizinhas das nuvens...

Assim poderemos parafrasear o Poeta dizendo que a torre, se não é o Porto espremido para cima, é, pelo menos, "in partibus", a sua velha muralha medieva posta a pique.»
(...)

Sant'Anna Dionísio

13 comentários:

Pedro Estácio disse...

Olá Carlos,

Espero que a entrada em 2006 tenha sido boa!

Gostei do extracto e estou desejoso pela próxima... senão aguentar a curiosidade, lá vouter que ir para o lado da Prç.Leões tentar encontrar a colectânea na Lello.

Grd Abrç,
Pedro Estácio

Carlos Romão disse...

Boa noite Pedro,
não sei se a colectânea estará à venda na Lello. Eu encontrei-a bisbilhotando livros no Alfarrabista João Soares, na Rua das Flores.
Um abraço.

CARMO disse...

Essa do alfarrabista foi uma excelente sorte! Post fantástico!

Anónimo disse...

Caro Carlos,

Esse é de facto um dos meus livros preferidos sobre o Porto pelo que vou seguir com atenção esta série de posts.

Permita-me referir mais uns livros bem interessantes sobre o "Porto de outros tempos":

* "O Porto d'outros tempos : notas historicas, memorias, recordações" de Firmino Pereira
* "O Porto há 30 anos" de Alberto Pimentel
* "O Porto na berlinda : memórias d'uma família portuense" de Alberto Pimentel
* "Guia do viajante no Porto" de Alberto Pimentel

Cumprimentos

Artur Navarro

Fernando Ribeiro disse...

Prezado Carlos, importa aqui lembrar as circunstâncias em que João de Almada veio para o Porto, na sequência da chamada "Revolta dos Taberbeiros".

Esta revolta deu-se em resultado da imposição, feita pelo Marquês de Pombal, de que a venda de vinho na cidade passaria a ser um monopólio da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro.

Pode ler-se em http://www.arqnet.pt/dicionario/pombal1m.html:

"(...)mas a companhia do Alto Douro, que vinha ferir mortalmente o livre comércio do Porto, levantou grandes resistências. A 23 de Fevereiro de 1757 houve no Porto contra a companhia um motim de alguma gravidade, mas que Sebastião de Carvalho determinou logo considerar como uma rebelião formal contra a pessoa do rei e os seus fautores como réus do crime de lesa-majestade.(...)

Nomeou logo uma alçada, de que fazia parte o tristemente célebre desembargador José Mascarenhas Pacheco Pereira Coelho de Melo, e que condenou à pena de morte 21 homens e 9 mulheres, e a várias penas menos duras 155 homens e 33 mulheres. A pena de morte executou?se no dia 11 de Outubro em 13 homens e 4 mulheres, porque os outros conseguiram evadir-se.(...)"


Foi logo a seguir a estes trágicos acontecimentos, e com o encargo de garantir a ordem pública no Porto, que João de Almada e Melo foi nomeado governador militar da cidade pelo Marquês, seu primo direito.

A obra desenvolvida por João de Almada, na sequência da criação, por ele feita, da Junta de Obras Públicas, e do seu filho Francisco de Melo é da maior importância para a cidade.

Denudado

maresia_mar disse...

Olá Carlos,
em 1º lugar parabéns pelo magnifíco blogue que tanto dignifica a nossa cidade! Eu já um dia aqui vim parar e fiquei maravilhada com as fotos, mas agora que sei que é dum amigo dum filho de uma grande amiga minha, senti mais curiosidade e voltei... Adorei este seu post e pode crer que vou estar atenta aos próximos. Bjhs

rps disse...

Sant'ana Dionísio... Tenho esse nome nos "arquivos". Aprendi a ler na pré-primária e lendo O PRIMEIRO DE JANEIRO... É daí.
"Ganda posta", CR.
Abraço

Fernando Ribeiro disse...

No meu comentário anterior, eu devia ter escrito Revolta dos Taberneiros e não Revolta dos Taberbeiros... Peço desculpa.

Denudado

Jorge Guitián disse...

Estimado Carlos:

Unha vez mais, parabén polo teu blog (supoño que non hai problema en escribir en galego). Gracias polo teu convite e non dubides de que, tan pronto como teña a posibilidade, contactarei contigo para descubrir a gastronomía portuense (un xa intenta descubrila por si so, mais non é doado sendo de fora).

E cando veñas por Compostela (ou por Galicia), xa sabes con quen contactar.

Saúdos do Gourmet e do seu can gastrónomo.

Carlos Romão disse...

Artur Navarro,
obrigado pelas dicas dos livros.

RPS,
Já reparei que há muitos pontos de contacto entre as nossas memórias ;)
Um abraço


Denudado,

Sant'Anna Dionísio, numa outra crónica, intitulada «Almada o Velho», alude à nomeação e à acção de João de Almada, como uma tentativa de remissão, do Marquês de Pombal, pela crueldade manifestada durante a revolta dos taberneiros. Não me espanta que assim tenha sido. Bem próximo de nós temos outro exemplo de remissão do poder político, através de rápidos investimentos em vias de comunicação, na região de Castelo de Paiva, depois da queda da ponte de Entre-os-Rios.

Vejamos então o que diz o cronista:

A entrada de João de Almada, no Porto, como regedor de armas (hoje dir-se-ia como governador militar e governador civil) deve ter sido, para ele, muito delicada, e, para a cidade, muito emocionante. E dizemos assim tendo presente, por assim dizer, a atmosfera de indignação e de terrores que, no velho burgo, decerto se respirava depois da cruel execução (14 de Outubro de 1757), no Campo da Cordoaria, dos cabecilhas da burlesca rebelião popular levantada contra a companhia do Alto Douro. A terrível desmesura da condenação e execução de duas dezenas de participantes desse motim, levada a efeito com requintes de crueldade e no íntimo por toda a gente verberada, talvez tenha pesado como um «erro» no próprio espírito frio e tácito, do Marquês, levando-o por ventura a desejar dar uma compensação à cidade, tão duramente ferida e retraída.
Dir-se-ia que a missão de João de Almada, ou sugerida pelo ministro, seu parente, cauterizado pelo secreto remorso (se em tal homem era possível tal sentir) ou nascido nele mesmo, era a de tentar fazer esquecer por meio de grandes renovações citadinas, embelezamentos e comodidades, o sentimento de abominação que a população portuense decerto votava, e por justos motivos, ao Déspota.
O certo é que, durante os vinte e cinco anos em que João de Almada superintendente nos assuntos mais importantes, a cidade do Porto assiste a esta ininterrupta série de transformações: (...).


O autor passa então a referir inúmeras obras promovidas, durante vinte e cinco anos, pelo Almada, pai, de que deixo este mordaz e actual parágrafo:

Em 1761, inicia-se o prolongamento da Rua das Hortas e procede-se à urbanização geométrica, de tipo pombalino, do arrabalde de Lamelas, abrindo-se, com patente sabedoria, a «rua nova» de Santa Catarina, cujo lançamento é, sem dúvida, muito mais digno de reparo e de valorização, que a rua a que se deu o nome «do Almada». O estudo atento (porque há também o estudo a dormir) dessa rua, tão acertadamente nivelada e perspectivada, bem poderia ser objecto de um curso, não diremos de uma Escola de Arquitectura, porque isso é óbvio, mas de um curso de férias de candidatos a presidentes de câmaras...»

Gourmet de províncias
Não tenho nada contra o castelhano, mas a sonoridade do galego é-me mais agradável.
Saudações para ti e para o teu cão gastrónomo.

isabel mendes ferreira disse...

oláaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
beijo.

Giacomo disse...

Olá.
Fui a Portugal.
Não tive como ir ao Porto.
Acompanhando teu Blog, vi que bobagem eu fiz. Deveria ter brigado mais com a operadora turística.
Fica para a próxima viagem.
Mas vou te acompanhar.
Fiz um link no meu Blog para cá.
Abs.//

Miguel disse...

Este blog é sem qualquer tipo de dúvida, uma das melhores coisas que nos últimos anos aconteceu à minha cidade do Porto. À falta de grandes progressos na cidade, nada como "ouvirmos" as suas histórias e (re) descobrirmos os angulos que o Carlos nos proporciona. Servico público de tripeirismo!